domingo, 13 de maio de 2012

Memórias de um Eleitor Fantasma...


 Fran Pacheco

ESTE DIÁRIO PERTENCEU ÀQUELE QUE EM VIDA SE CHAMOU FRAN PACHECO. FAVOR INCINERAR ANTES DE MANUSEAR.

Manáos, 14 de julho de 1891

Que fim levou a dotação orçamentária pra segunda torre da Igreja de São Sebastião? Confiteor. Mea culpa, mea maxima culpa... Ó, Frei José dos Innocentes, não me venhas querer arrancar confissão de um anarchista. Só posso dizer que foi para a “causa”. Eu não peço desculpas de nada, mas podemos fazer negócio. Afinal, eu sei o que vocês fizeram com aqueles índios no verão passado. A indulgência tá saindo a quantos mil-réis? 

As delícias que chegam de Europa pela Booth Line. Gostei deveras dessa garrafa de Vin Mariani... 250 mg de coca por litro. Se até Sua Santidade, o Papa Leão XIII faz propaganda deste manjar... Dizem por aí que aquele intragável xarope de cola norte-americano do Dr. Pemberton leva míseros 7mg de coca por litro... Pfui... Mas afinal vamos começar a postar neste diário.

A primeira frase é sempre a mais difícil... “Era uma noite escura e tormentosa” seria o clichet da vez... Ou então “Concetta, luz da minha vida, fôgo da minha paixão”... “Call me Fran”.... “Mamãe morreu hoje, acho que vou tomar uma fresca”... “Famílias felizes são tôdas iguais, as penduradas em promissórias é que têm estilo próprio”... “Muitos annos depois, diante do pelotão de fuzilamento, eu, Fran Pacheco haveria de recordar aquela tarde remota em que meu pai me levou para conhecer biblicamente a anã polidáctila.”. “Pelo grito e pelo berro”... Nonada, deixo esses intróitos para os vermes que primeiro os plagiarem.

 

Manáos, de 26 de outubro de 1899

Preciso organizar melhor o meu tempo. Eduardo Ribeiro está a cem milhas náuticas por hora, recluso na sua chácara em Flôres, cheio de idéias tresloucadas para voltar ao pôder (apeado que foi pelos Néry, esses Bórgias dos trópicos) e quer meus valiosos palpites em tudo. Cismou agora em construir um verdadeiro Capitólio no alto da Avenida. Entre um tremelique e outro, oferece-me uns charutos de duvidosa procedência. Declino. 

Folheio os manuscritos do breve relatório do Dr. Euclides da Cunha no front bahiano, com a indicação “prezado Fran, empaquei na segunda batalha. Queres ser meu Conselheiro? Podes reescrever à vontade. Mas não me demores! Ou Júlio de Mesquita ameaça-me cortar os adiantamentos”. Deixa comigo, meu amigo nervosinho Euclides.  

Atenção, vou cunhar um termo: neojornalismo. Faço isso, Euclides, em retribuição à calorosa acolhida que a Sra. tua espôsa deu-me na Capital Federal, enquanto estavas nos sertões. Ah, aquelas madeleines de Donana... Já acrescentei ao teu pequeno rascunho umas duzentas páginas de abobrinhas no estilo mais empolado, positivista e sanitarista possível. Coelho Netto e Ruyzinho perdem. Tudo ditado sob o encanto da Fada Verde (70% de teor alcohólico). Será que vão entender a sutileza da minha, digo, nossa, digo, da tua sátira dionysíaca definitiva sobre este Brazil, ô Euclides?

Ponte Buarque de Macêdo, Recife, 20 de agosto de 1907

Os tremores não passam. A vertigem é intensa. Minhas articulações rangem. O suor é gelado e viscoso. E ainda por cima ácido. Tenho coceiras até no céu da boca. Meus dedos enegrecidos se contraem em posições obscenas, ao bel-prazer. Pólipos e baratas, milhares, miríades delas, brotam de casulos e inflorescências no teto de minha água-furtada. E riem, as hediondas canalhinhas! Sem nenhum dente na boca! Um coro mefistofélico: “Merencório! Merencório!” Meu corpo edemaciado é um rebotalho cósmico, aleijão de eras immemoriaes, dejeto da Criação. Já devo ter escarrado metade do meu sêr, evacuado dois terços das minhas nauseabundas tripas. Meus olhos estão em vias de afundar no crânio. Temo contemplar os arrebóis pela última vez. Nunca mais misturo rapé de paricá com aquele maldito chá de ayahuasca. Só podia estar passado! Ó Augusto dos Anjos, que cara de satisfação é essa? Pára de tomar nota desses disparates, peste! Toma um fósforo. Acende o meu cigarro. Se escapar dessa, te dedico um sonneto.

Copacabana, 07 de abril de 1952

 

Levo Virgínia pela primeira vez à Vogue. Secretária da Gastal, verdadeiro achado meu, a morena fica encantada. Antônio Maria não menos. O Gordo me cumprimenta, num misto de camaradagem e inveja. Antônio parece estar em pior forma do que eu. Continuamos fiéis ao juramento solene, feito junto com o Vinicius, diante de uns velhotes patéticos que faziam ginástica na praia: nunca, jamais faríamos qualquer exercício (e ainda gritamos “Canalhas!” para os patifes). Evidentemente, Virgínia não se inclui nesta vedação às atividades físicas de alto impacto.

A pequena acha que pau é duro toda vida. Tirou essa conclusão por experiência própria, de todos os sujeitos que já chegaram perto dela o bastante para conversar, ou para dançar, ou coisa pior. Só conhece o estado sólido da coisa.

Quem sou eu para abalar suas convicções?

(Em breve: o dia em que Jânio me entregou a presidência. E declinei.)