Fran Pacheco
ESTE DIÁRIO PERTENCEU ÀQUELE QUE EM VIDA SE CHAMOU FRAN PACHECO. FAVOR INCINERAR ANTES DE MANUSEAR.
Manáos, 14 de julho de 1891
Que fim levou a
dotação orçamentária pra segunda torre da Igreja de São Sebastião?
Confiteor. Mea culpa, mea maxima culpa... Ó, Frei José dos Innocentes,
não me venhas querer arrancar confissão de um anarchista. Só posso dizer
que foi para a “causa”. Eu não peço desculpas de nada, mas podemos
fazer negócio. Afinal, eu sei o que vocês fizeram com aqueles índios no
verão passado. A indulgência tá saindo a quantos mil-réis?
As delícias que
chegam de Europa pela Booth Line. Gostei deveras dessa garrafa de Vin
Mariani... 250 mg de coca por litro. Se até Sua Santidade, o Papa Leão
XIII faz propaganda deste manjar... Dizem por aí que aquele intragável
xarope de cola norte-americano do Dr. Pemberton leva míseros 7mg de coca
por litro... Pfui... Mas afinal vamos começar a postar neste diário.
A primeira frase é sempre a mais difícil... “Era uma noite escura e tormentosa” seria o clichet
da vez... Ou então “Concetta, luz da minha vida, fôgo da minha
paixão”... “Call me Fran”.... “Mamãe morreu hoje, acho que vou tomar uma
fresca”... “Famílias felizes são tôdas iguais, as penduradas em
promissórias é que têm estilo próprio”... “Muitos annos depois, diante
do pelotão de fuzilamento, eu, Fran Pacheco haveria de recordar aquela
tarde remota em que meu pai me levou para conhecer biblicamente a anã
polidáctila.”. “Pelo grito e pelo berro”... Nonada, deixo esses
intróitos para os vermes que primeiro os plagiarem.
Manáos, de 26 de outubro de 1899
Preciso organizar
melhor o meu tempo. Eduardo Ribeiro está a cem milhas náuticas por
hora, recluso na sua chácara em Flôres, cheio de idéias tresloucadas
para voltar ao pôder (apeado que foi pelos Néry, esses Bórgias dos
trópicos) e quer meus valiosos palpites em tudo. Cismou agora em
construir um verdadeiro Capitólio no alto da Avenida. Entre um
tremelique e outro, oferece-me uns charutos de duvidosa procedência.
Declino.
Folheio os
manuscritos do breve relatório do Dr. Euclides da Cunha no front
bahiano, com a indicação “prezado Fran, empaquei na segunda batalha.
Queres ser meu Conselheiro? Podes reescrever à vontade. Mas não me
demores! Ou Júlio de Mesquita ameaça-me cortar os adiantamentos”. Deixa
comigo, meu amigo nervosinho Euclides.
Atenção, vou
cunhar um termo: neojornalismo. Faço isso, Euclides, em retribuição à
calorosa acolhida que a Sra. tua espôsa deu-me na Capital Federal,
enquanto estavas nos sertões. Ah, aquelas madeleines de Donana... Já
acrescentei ao teu pequeno rascunho umas duzentas páginas de abobrinhas
no estilo mais empolado, positivista e sanitarista possível. Coelho
Netto e Ruyzinho perdem. Tudo ditado sob o encanto da Fada Verde (70% de
teor alcohólico). Será que vão entender a sutileza da minha, digo,
nossa, digo, da tua sátira dionysíaca definitiva sobre este Brazil, ô
Euclides?
Ponte Buarque de Macêdo, Recife, 20 de agosto de 1907
Os tremores não
passam. A vertigem é intensa. Minhas articulações rangem. O suor é
gelado e viscoso. E ainda por cima ácido. Tenho coceiras até no céu da
boca. Meus dedos enegrecidos se contraem em posições obscenas, ao
bel-prazer. Pólipos e baratas, milhares, miríades delas, brotam de
casulos e inflorescências no teto de minha água-furtada. E riem, as
hediondas canalhinhas! Sem nenhum dente na boca! Um coro mefistofélico:
“Merencório! Merencório!” Meu corpo edemaciado é um rebotalho cósmico,
aleijão de eras immemoriaes, dejeto da Criação. Já devo ter escarrado
metade do meu sêr, evacuado dois terços das minhas nauseabundas tripas.
Meus olhos estão em vias de afundar no crânio. Temo contemplar os
arrebóis pela última vez. Nunca mais misturo rapé de paricá com aquele
maldito chá de ayahuasca. Só podia estar passado! Ó Augusto dos Anjos,
que cara de satisfação é essa? Pára de tomar nota desses disparates,
peste! Toma um fósforo. Acende o meu cigarro. Se escapar dessa, te
dedico um sonneto.
Copacabana, 07 de abril de 1952
Levo Virgínia
pela primeira vez à Vogue. Secretária da Gastal, verdadeiro achado meu, a
morena fica encantada. Antônio Maria não menos. O Gordo me cumprimenta,
num misto de camaradagem e inveja. Antônio parece estar em pior forma
do que eu. Continuamos fiéis ao juramento solene, feito junto com o
Vinicius, diante de uns velhotes patéticos que faziam ginástica na
praia: nunca, jamais faríamos qualquer exercício (e ainda gritamos
“Canalhas!” para os patifes). Evidentemente, Virgínia não se inclui
nesta vedação às atividades físicas de alto impacto.
A pequena acha
que pau é duro toda vida. Tirou essa conclusão por experiência própria,
de todos os sujeitos que já chegaram perto dela o bastante para
conversar, ou para dançar, ou coisa pior. Só conhece o estado sólido da
coisa.
Quem sou eu para abalar suas convicções?
(Em breve: o dia em que Jânio me entregou a presidência. E declinei.)